O DESPERTAR

12/05/2015 12:50

Ela acordou à meia-noite sem saber direito onde estava. Era um ambiente estranho, escuro e fedorento. Ratos e teias de aranha para todo lado. Ela assustou-se com o que viu e sentiu.

Sua última lembrança era a rua onde morava, seu marido, a sacola de compras do supermercado e as crianças uniformizadas indo à escola. O que poderia ter acontecido para que ela fosse parar naquele sinistro lugar?

Por mais que se esforçasse nada lhe vinha à mente, até que teve uma repentina sensação de dejá-vu: uma mulher vestida com roupas antigas, uma piteira em uma mão e uma taça de champagne na outra. Ela gargalhava meio debochada enquanto deixava o conteúdo da taça levemente cair sobre seu vestido de festa, já manchado de outros pequenos acidentes como este.

Começou a andar vagarosamente e assustada por aquele estranho lugar, ainda meio confusa com a situação. De repente avistou de longe uma janela que mostrava uma certa iluminação ao seu fundo. Foi devagarzinho, tomou coragem, e cada vez que se aproximava o cheiro de mofo e pó velho aumentava. Ela abriu a janela e viu um farol baixo entre as árvores vindo de um pequeno caminhão ou caminhonete, não sabia bem. Tinha um homem lá dentro, mas à sua volta era tudo escuro e deserto.

Não ouvia sequer um barulho. Aos poucos percebeu que estava em uma imensa casa abandonada. Começou a abrir gavetas de um móvel encostado no fundo da sala, mas mal podia enxergar o que havia dentro. Tinha medo de colocar a mão ali aleatoriamente, mas não teve jeito. De lá tirou algumas notinhas com nomes e números de telefone. O estranho é que, apesar de brasileira, os nomes que ali estavam escritos pareciam de origem espanhola..... Será que estou na Espanha, em Madri, Santiago de Compostela? Como vim parar aqui se há 2 minutos atrás saía do supermercado com meus filhos? Será que enlouqueci? Será que estou dopada ou fui atropelada e isso é uma sensação post mortem ? O mais estranho foi quando encontrou um espelho: apesar da falta de iluminação, pôde perceber que seu casaco estava todo rasgado e seus cabelos compridos e loiros estavam curtos e pretos. Ela começou a chorar. Seus cabelos eram seu xodó. Como aquilo poderia ter acontecido com ela? Passou a mão pelo seu corpo e sentiu..... uma falta de seios.... Cadê meus seios, cadê meus seios? Descendo um pouco mais a mão..... Eu sou um homem, eu tenho pênis...... Socorrooooooooo!!! Quem sou eu? Onde estou? O que está acontecendo, meu Deus? Ela – ou ele – começou a gritar por socorro..... Notou que sua voz era realmente grossa: ela era homem...... Oh! Ouviu passos na escada. O farol da caminhonete já não mais refletia na janela velha e mofada. Viu o semblante de um homem gordo ao fundo e ficou sem saber se corria dele ou lhe pedia ajuda, optando por fugir. Viu uma escada no fundo daquela mansão e a desceu correndo. Os degraus eram tão velhos e tão moles que pareciam rachar cada vez que eram tocados por seus pés. Rapidamente saiu pela porta dos fundos e embrenhou-se em uma floresta, correndo exaustivamente, até avistar uma estrada. Não passava carro, nem gente, nem moto, nem bicicleta, nem bicho. Achou melhor esconder-se no meio do mato e acabou cochilando entre as árvores.

De repente despertou com um grito: “ João Vítor, hora do almoço! Não acha que dormiu demais por hoje não?” Era domingo, sua mãe havia preparado uma torta de frango com Caesar Salad deliciosa. Seu pai acabava de voltar com a caminhonete e os dois dobermans na traseira, após a corrida dominical no parque da cidade. No dia seguinte era prova de espanhol e ele não tinha estudado nada. Ouviu os passos do pai subindo as escadas, reforçando o convite da mãe para o almoço. Sentia aflição cada vez que tocava os degraus  e  a madeira rangia. Sua mãe, linda e loira, com aqueles cabelos enormes que são seu orgulho, dizia ao seu pai, sorrindo: “ou mudamos de casa ou fazemos uma reforma geral, não aguento mais barulho de madeira rangendo”. Em frente à mesa da sala a foto de sua avó materna, famosa fanfarrona da família, que morreu atropelada aos 35 anos com roupa de festa e piteira na mão, após um porre de champanhe no casamento de sua irmã mais nova.  João Pedro entrou pela porta para  participar do almoço, perguntando à mãe se o  uniforme da escola já estava pronto para o dia seguinte. Ainda era possível ver as sacolas de supermercado, com os restos das compras do dia anterior, encostadas em um vão da cozinha.

Verônica Tratch.